Cinco séculos de uniões e disputas entre povos ameríndios, ibéricos e africanos formaram um continente e sua música. Apesar das dimensões gigantescas e da variedade cultural desencorajar generalizações, podemos dizer que a América Latina pulsa em ritmo sincopado, canta melodias complexas guiadas muitas vezes pelas características sonoras do português e do espanhol e que soa predominante a sons de cordas, couros e madeiras. Nossa proposta aqui não é (re)contar uma história da música latino-americana, mas passear por algumas de suas principais características e curiosidades. Como guia, o instigante clipe da canção “Te Parece”, uma composição do mestre uruguaio Ruben Rada, na interpretação da cantora e compositora capixaba TAMY.
As influências nativas
Não se sabe muito sobre as inúmeras tradições musicais indígenas antes da chegada dos europeus. As influências que menos se deterioraram com o tempo são encontradas hoje em dia nas regiões andinas e em partes do México e do Caribe, áreas do continente em que as populações locais conseguiram se manter mais coesas. Ultimamente, pesquisas tentam resgatar a musicalidade dos índios para preservá-la e/ou incorporá-la a novos projetos musicais. Constantemente associadas a diferentes tipos de flautas e chocalhos – que, de fato, são muito presentes –, as tradições indígenas também ajudaram a desenvolver instrumentos de corda, quase sempre em adaptações do alaúde e do violão, instrumentos de origem árabe-europeia. Assim surgiram o boliviano Charango (originalmente feito de carapaça de Tatu) e a Bandurria, um tipo de bandolim comum no Peru. Apesar de não ter contado com influência direta, hoje em dia considera-se que os modos de tocar o famoso Cuatro, instrumento criollo bastante utilizado na Venezuela, na Colômbia e em Porto Rico, também se desenvolveram por mãos indígenas. Vale lembrar ainda que, ao longo dos tempos, a música também desempenhou forte papel de afirmação social e política para comunidades e artistas indígenas de todo continente.
As raízes africanas
A assimilação das múltiplas culturas africanas foi um dos poucos pontos positivos da infame escravidão que assolou as Américas até o século XIX. Foram trazidos para cá majoritariamente povos dos grupos étnico-culturais Iorubá (que formam parte da população do que atualmente conhecemos por Nigéria, Benim e Togo) e Banto (sobretudo, República do Congo, Angola e Moçambique). Evidentemente as classificações genéricas e as imposições feitas no período do tráfico de escravos não dão conta da riqueza e da diversidade das tradições culturais de cada povo, mas é possível traçar alguns. Pelo vínculo com manifestações religiosas, diferentes vertentes do povo Iorubá legaram ao continente americano a Santería cubana, o Ijexá e os Maracatus brasileiros. O povo Banto, mais constante no Brasil por causa da dominação portuguesa também nos países africanos, desenvolveu o lundu, o samba e a capoeira, raízes que fizeram florescer o ritmo de um país inteiro. Aliás, a principal contribuição dos povos africanos à música latino-americana está certamente em suas insuperáveis linhas rítmicas. Tambores, atabaques e bongôs gestaram gêneros musicais como a Rumba, a Cumbia, a Salsa e tantos outros. Após a massificação por influência da mídia norte-americana na primeira metade do século XX, uma fusão equivocada desses gêneros se tornaria um ícone musical (talvez exagerado) de latinidade. O Candombe uruguaio, que tem em Ruben Rada um dos seus principais nomes, é, ao contrário, uma fusão bastante bem orientada de ritmos africanos que se desenvolveram em Montevidéu.
As misturas ibéricas
Antes mesmo de chegarem às Américas, espanhóis e portugueses já formavam caldeirões de povos e culturas. Eram/são ao mesmo tempo celtas, árabes, norte-africanos, judeus e ciganos influenciados pelas raízes latinas e cristãs de Roma e pelas culturas dos reinos europeus vizinhos. Obviamente, toda essa diversidade se refletiu na música. A fala e o canto anasalados do norte da África que deram origem a tantas palavras em português e em espanhol e que contribuíram ainda mais para o potencial melódico de ambas as línguas. A música cigana que viria a ser uma das origens diretas do Tango platino. A adoção da tradição francesa dos trovadores, raiz principal da canção como gênero musical. Os instrumentos mouros, como o alaúde e o adufe, próximo do que conhecemos hoje como pandeiro só que maior e em formato quadrangular. As diferentes maneiras de tocar violão na península ibérica, talvez a região que melhor desenvolveu o instrumento. A décima espanhola, origem dos boleros, e as marchinhas lisboetas, origem de diversos gêneros musicais brasileiros.
A América Latina continua expandido suas fronteiras musicais ao mesmo tempo em que redescobre suas tradições.