Em tributo a sua mãe, brasileira de nascimento, o lendário Ruben Rada apresenta o Brasil musical que vive dento dele.  

 

Muitos pontos em comum permitem aproximar Ruben Rada de, entre outros, Milton Nascimento (pela sofisticação harmônico-melódica e o diálogo com o jazz), Tim Maia (pela irreverência, o timbre grave de veia soul e, principalmente, pela privilegiada intuição musical), Gilberto Gil (pela capacidade única de misturar linguagens, criando uma musicalidade própria), Jorge Ben (por criar pontes entre gêneros tradicionais e estrangeiros de forma revolucionária, sempre guiado pelo som) e de todos eles pela importância que o artista tem na construção da história musical em seu país e em todo o continente.

A música do Brasil teve sempre grande influência sobre as vertentes modernas da música uruguaia e a arte de Ruben Rada é prova disso. Mas, apesar de colecionar fãs entre músicos brasileiros, como, para citar alguns, Ed Motta, Geraldo Azevedo, Joyce e Marcelo D2, é sintomático que o artista seja pouco conhecido por aqui. As Noites do Rio / Aerolíneas Candombe chega para ajudar a corrigir esta falha histórica e com um objetivo nobre – talvez o mais nobre de todos. O disco é também uma homenagem a mãe do artista uruguaio, Carmen María Silva, natural de Santana do Livramento (RS). “É uma forma que encontrei de devolver o espírito de minha mãe ao seu país de origem”.

O projeto começou a ganhar corpo quando Ruben Rada e Ronaldo Bastos se conheceram há dois anos, apresentados por Tamy, cantora brasileira que estava morando em Montevideo na época. Em pouco tempo a admiração mútua e as muitas afinidades entre os artistas deram ensejo a diversas parcerias, das quais sete entraram no repertório do disco.

2019. Ronaldo Bastos e Ruben Rada, em Montevidéo

Neste sobrevoo afetivo pelo Brasil musical de Rada há espaço para Mangueira, carnaval, tambor, brisa, preguiça, medo, renascimento, pitanga, maracujá, Oxalá, azeite de dendê, Barra da Tijuca, São Paulo e Salvador; meninos brancos, negros e guaranis; há espaço para o baião (“Baião É Água Espraiada”), que o artista aprendeu a admirar em casa por influência da mãe; para as transcendentais baladas românticas, como “A Menina do Chapéu Azul”, “Nada Sem o Seu Olhar” (a única que não é inteiramente cantada em português), “Sereia” e “Carolina”; e para “Dia da Morena” – música que conta com a doçura esperta de Tamy –, ritmada em sete tempos, numa levada pouco comum que Rada (baterista na faixa) aprendeu com Airto Moreira na época da gravação do segundo álbum da banda Opa, em Los Angeles, nos anos 70.

Criado por negros escravizados vindos de uma África multi-étnica e culturalmente muito variada, o candombe – ritmo uruguaio por excelência – se gestou em um centro urbano (Montevideo) e da tragédia fez nascer alegria e beleza. Qualquer semelhança com o samba não é mera coincidência. Com participação especial de Carlinhos Brown, a faixa de abertura, “Chão da Mangueira”, mistura os dois gêneros tradicionais de origem africana. A música aproxima dois mestres da percussão – exímios cantores e compositores –, figuras de destaque na afirmação social, cultural e política dos negros e negras em nosso continente. “Chão da Mangueira” dialoga com a faixa-título, um dos primeiros candombes – senão o primeiro – com letra em português escrita por um compositor brasileiro. Uma homenagem à cidade do Rio de Janeiro e à cultura brasileira, feita com admiração e respeito, e carregada de uma ancestralidade que nos é muito familiar.

A releitura de “Travessia”, clássico de Milton Nascimento e Fernando Brant, foi a oportunidade de homenagear o amigo Bituca em uma das músicas mais amadas por Rada e pelos brasileiros. A gravação traz um sopro de música gospel americana e deixa transparecer a influência da arte de Ray Charles, artista que também é referência para nosso Bituca.

As Noites do Rio / Aerolíneas Candombe contém dez canções em onze faixas. “A Menina do Chapéu Azul” surge duas vezes, a primeira em gravação solo de Rada com o piano de Gustavo Montemurro, músico requisitado no lado oriental do Rio Uruguai, também arranjador e produtor do álbum junto a Rada. E, encerrando o disco, na interpretação de Silva, quem se apaixonou pela canção desde o primeiro momento. Nessa segunda versão, além do baixo de Nacho Mateu e dos vocalises e das percussões do Rada, entraram o piano e os teclados do brasileiro Sacha Amback.

O álbum foi gravado inteiramente em 2020, durante a pandemia. Com exceção das vozes de Silva, Tamy e Carlinhos Brown, e do piano de Sacha Amback, tudo foi gravado em Montevideo. Além de Rada nos vocais, em todas as percussões e eventualmente na bateria, e de Montemurro nas teclas e nos arranjos, o álbum contou com músicos renomados do Uruguai, como Nicolás Ibarburu (violões), Nacho Mateu e Federico Righi (baixos) Lucila e Julieta Rada (vocais), Matías Rada e Roberto “Palito” Elizalde (guitarras), Mauro Perez (gaita), Miguel Leal (trompete), Artigas Leal (trombone) e Santiago Gutierrez (sax).

No contexto das revoluções culturais da década de 1960, Ruben Rada mudou o panorama musical em seu país para sempre ao misturar Beatles, bossa nova, psicodelia e candombe. Lenda viva também na Argentina, onde participou das originais experiências roqueiras que se desenrolaram nos anos 1970 e 1980, Rada é celebrado por toda a Latinoamérica. Em 2011, foi o primeiro uruguaio a receber o Latin Grammy Lifetime Achievement Award, prêmio criado em 2004. Exceto pelas recentes – e instigantes – colaborações no universo pop, o intercâmbio musical entre o Brasil e os demais países da América Latina sempre esteve muito aquém das afinidades culturais e da história comum que partilhamos. Pop à sua maneira, As Noites do Rio / Aerolíneas Candombe é uma oportunidade rara de sentir o que de melhor se fez a partir do encontro de civilizações que veio ocorrer nesse nosso canto do mundo. É também o disco de um grande mestre que volta a ser menino para cantar o Brasil que conheceu primeiro pela voz de sua mãe.